
Começou no Jaru, cidadezinha do interior de Rondônia, que era onde estávamos "hospedados" há algum tempo. Éramos um grande grupo de pessoas, e seguíamos em dois ou três carros igualmente grandes.
O carro onde viajávamos era um Dodge Magnum (nem sei se isso existe hoje em dia) e, como o seu design não era próprio para estradas acidentadas, quando chegamos a Porto Velho, o meu pai teve que o pôr em cima de um camião, por forma a atravessar o areial no qual se tinha transformado a estrada alternativa para Manaus (sim, porque a estrada principal estava cortada por força de obras, uma vez que, no asfalto, formaram-se devido às chuvas, verdadeiras crateras intransponíveis mesmo para o camião).
A segurança rodoviária era algo de que não se falava muito naquela altura, e lá fomos nós, dentro do carro, em cima do camião.
Bem... na verdade não fomos muito longe (nem chegamos a Humaitá, no Amazonas)... isso porque a estrada estava tão mal que nem o camião passava.
Assim, durante 29 dias, fizemos de um posto de beira de estrada a nossa morada. Era o posto Piquiá, onde não se viam muitas caras novas, excepto as nossas, as de alguns outros viajantes na mesma situação e as dos seus moradores. Foram umas interessantes férias (forçadas) que tiramos. Passamos a dormir em tendas, a comer peixes que nós próprios pescávamos, a passear bastante, a brincar (afinal, a minha irmã e eu éramos ainda crianças).
Quando chegou a notícia de que a estrada já dispunha de condições para passarmos, levantamos acampamento e lá fomos nós... Lembro-me que no primeiro dia conseguimos viajar 7 km. É verdade! Foram 7 "longos" km o dia todo... isso porque a estrada não tinha as condições que pensávamos e os homens tinham que parar poucos metros depois de arrancar com os carros para tapar os buracos com pás e mais pás de terra, de modo a que não se partissem as peças dos veículos ao atravessá-los.
Não me lembro quanto tempo levamos para chegar a Manaus, mas chegarmos lá foi um grande alívio, porque a estrada a partir dali não era tão má, e já podíamos tirar o carro de cima do camião (esqueci de mencionar que o carro havia entrado de marcha à ré no camião, o que nos obrigou a viajar de costas durante todo o percurso).
Bem, passamos uns dias em Manaus para descansar e compor algumas peças do carro que entretanto não estavam muito seguras, e seguimos viagem logo que pudemos.
De Manaus a Boa Vista, em Roraima, a viagem correu mais ou menos normal... mas houve um episódio digno de menção: tivémos problemas com o carro. Isso por si já era mau... mas o facto é que o problema se deu dentro da reserva indígena local (a estrada, se não me engano a BR 174, corta uma reserva, sendo que há - ou havia, naquela altura - um grande portão à entrada e outro à saída, que eram fechados durante a noite, período em que não era permitido o trânsito automóvel).
Todos os motoristas de camião que por nós passavam e paravam para ver se precisávamos de ajuda, avisavam para sairmos de lá (com visível expressão de preocupação), porque, segundo eles (que conheciam bem o território, já que faziam com frequência aquele caminho), os nativos tornavam-se violentos com o cair da noite. O certo é que sem carro não poderíamos sair, o concerto estava a levar mais tempo que o previsto... e a noite estava a cair. Em pouco tempo, os portões seriam fechados.
O meu pai teve a brilhante ideia de pedir guarida na sede da reserva, que não era muito longe dali.
Logo à entrada, notamos que eles tinham um rádio de pilhas ligado a tocar um forró (as "novas tecnologias" ao serviço da integração entre os povos), alguns estavam a dançar, e haviam umas mulheres vestidas apenas com a parte de baixo e com duas ou três crianças "penduradas" à cintura.
Por acaso até foram muito simpáticos, deram-nos uma tenda (acho que o nome é maloca) feita de palha para passarmos a noite (e pediram que pela manhã, logo que o carro estivesse pronto, nós partíssemos), deram-nos carne de caça para cozinharmos e mostraram-nos alguns dos seus "instrumentos".
Refiro-me a umas lanças que estavam encostadas a um canto da maloca, e que uma das meninas do nosso grupo (a Dora), a tentar meter conversa com uns jovens índios que, tal como nós, estavam curiosos com a novidade, decidiu perguntar acerca da sua função:
- Isso é uma arma interessante... Serve para matar os animais que vocês comem?
Resposta do nativo:
- Sim, mata os animais... e mata gente também!
Escusado será dizer que a Dora não perguntou mais nada... e nem o porco do mato oferecido por eles para o jantar ela quis provar... Eu cá não entendi! A carne estava tão boa...