domingo, 23 de novembro de 2008

Uma aventura na Floresta...

E por falar em recordações de infância, lembro-me de uma viagem para Boa Vista... tinha eu 13 anos.
Começou no Jaru, cidadezinha do interior de Rondônia, que era onde estávamos "hospedados" há algum tempo. Éramos um grande grupo de pessoas, e seguíamos em dois ou três carros igualmente grandes.
O carro onde viajávamos era um Dodge Magnum (nem sei se isso existe hoje em dia) e, como o seu design não era próprio para estradas acidentadas, quando chegamos a Porto Velho, o meu pai teve que o pôr em cima de um camião, por forma a atravessar o areial no qual se tinha transformado a estrada alternativa para Manaus (sim, porque a estrada principal estava cortada por força de obras, uma vez que, no asfalto, formaram-se devido às chuvas, verdadeiras crateras intransponíveis mesmo para o camião).
A segurança rodoviária era algo de que não se falava muito naquela altura, e lá fomos nós, dentro do carro, em cima do camião.
Bem... na verdade não fomos muito longe (nem chegamos a Humaitá, no Amazonas)... isso porque a estrada estava tão mal que nem o camião passava.
Assim, durante 29 dias, fizemos de um posto de beira de estrada a nossa morada. Era o posto Piquiá, onde não se viam muitas caras novas, excepto as nossas, as de alguns outros viajantes na mesma situação e as dos seus moradores. Foram umas interessantes férias (forçadas) que tiramos. Passamos a dormir em tendas, a comer peixes que nós próprios pescávamos, a passear bastante, a brincar (afinal, a minha irmã e eu éramos ainda crianças).
Quando chegou a notícia de que a estrada já dispunha de condições para passarmos, levantamos acampamento e lá fomos nós... Lembro-me que no primeiro dia conseguimos viajar 7 km. É verdade! Foram 7 "longos" km o dia todo... isso porque a estrada não tinha as condições que pensávamos e os homens tinham que parar poucos metros depois de arrancar com os carros para tapar os buracos com pás e mais pás de terra, de modo a que não se partissem as peças dos veículos ao atravessá-los.
Não me lembro quanto tempo levamos para chegar a Manaus, mas chegarmos lá foi um grande alívio, porque a estrada a partir dali não era tão má, e já podíamos tirar o carro de cima do camião (esqueci de mencionar que o carro havia entrado de marcha à ré no camião, o que nos obrigou a viajar de costas durante todo o percurso).
Bem, passamos uns dias em Manaus para descansar e compor algumas peças do carro que entretanto não estavam muito seguras, e seguimos viagem logo que pudemos.
De Manaus a Boa Vista, em Roraima, a viagem correu mais ou menos normal... mas houve um episódio digno de menção: tivémos problemas com o carro. Isso por si já era mau... mas o facto é que o problema se deu dentro da reserva indígena local (a estrada, se não me engano a BR 174, corta uma reserva, sendo que há - ou havia, naquela altura - um grande portão à entrada e outro à saída, que eram fechados durante a noite, período em que não era permitido o trânsito automóvel).
Todos os motoristas de camião que por nós passavam e paravam para ver se precisávamos de ajuda, avisavam para sairmos de lá (com visível expressão de preocupação), porque, segundo eles (que conheciam bem o território, já que faziam com frequência aquele caminho), os nativos tornavam-se violentos com o cair da noite. O certo é que sem carro não poderíamos sair, o concerto estava a levar mais tempo que o previsto... e a noite estava a cair. Em pouco tempo, os portões seriam fechados.
O meu pai teve a brilhante ideia de pedir guarida na sede da reserva, que não era muito longe dali.
Logo à entrada, notamos que eles tinham um rádio de pilhas ligado a tocar um forró (as "novas tecnologias" ao serviço da integração entre os povos), alguns estavam a dançar, e haviam umas mulheres vestidas apenas com a parte de baixo e com duas ou três crianças "penduradas" à cintura.
Por acaso até foram muito simpáticos, deram-nos uma tenda (acho que o nome é maloca) feita de palha para passarmos a noite (e pediram que pela manhã, logo que o carro estivesse pronto, nós partíssemos), deram-nos carne de caça para cozinharmos e mostraram-nos alguns dos seus "instrumentos".
Refiro-me a umas lanças que estavam encostadas a um canto da maloca, e que uma das meninas do nosso grupo (a Dora), a tentar meter conversa com uns jovens índios que, tal como nós, estavam curiosos com a novidade, decidiu perguntar acerca da sua função:
- Isso é uma arma interessante... Serve para matar os animais que vocês comem?
Resposta do nativo:
- Sim, mata os animais... e mata gente também!
Escusado será dizer que a Dora não perguntou mais nada... e nem o porco do mato oferecido por eles para o jantar ela quis provar... Eu cá não entendi! A carne estava tão boa...

sábado, 22 de novembro de 2008

Sorte? O que é a sorte?


Quando o meu filho era pequeno, o pai dele e eu revezávamo-nos à noite para lhe contar histórias. Lembro-me que certa vez, após a velha fábula da “Cigarra e da formiga”, o meu pequenino achou que eu era a melhor contadora de histórias de todos os tempos. A partir daí, a fábula tinha que ser contada todas as noites.
Já farta do mesmo roteiro, tentei encontrar alternativas melhores, e lembrei-me de lhe contar alguns episódios da minha infância, onde não pude deixar de incluir as histórias das minhas viagens. Na verdade, não eram simples viagens de férias, eram viagens de mudança… sim, porque por razões de trabalho do meu pai, frequentemente, às vezes mais do que uma vez por ano, mudávamos de cidade (e até de país). Foi assim desde sempre. Até a faculdade, não me recordo de passar mais do que três anos, três meses e três dias no mesmo lugar (foi o tempo que vivemos em Boa Vista, Roraima, no Norte do Brasil... coincidência ou não, um número engraçado para recordar).
Certa noite, ao fim de mais uma história de viagem/mudança, oiço do meu filho a seguinte pergunta inocente:
- Mãe, porque eu também não “sou assim”?
O que ele queria saber era o porquê de não andar sempre a viajar, tal como a mãe. De qualquer forma, embora tenha sido clara a pergunta e a intenção dele, dado o visível fascínio que sentia pelas histórias, aquele “porque eu também não sou assim” soou-me estranho, como que a insinuar que “ser assim” era algo que se pegasse, algo contagioso, algo mau. Saiu-me, imediatamente, a seguinte resposta, ao mesmo tempo em que lhe dava um beijo de boa noite e aconchegava-lhe o lençol:
- Tu não és “assim” porque tiveste sorte.
Tenho a certeza que ele não compreendeu o que eu quis dizer (nem eu mesma sei o que quis dizer). Mesmo assim, deitou-se e dormiu “como um anjinho”, tal como o fazia todas as noites. O certo é que passado pouco mais de um ano desse dia, estávamos a mudar para o Continente Africano, e isso foi um grande acontecimento na vida dele… diria até que foi uma grande sorte…

Lembranças da Infância

As lembranças da infância são como os sonhos… estão vivos e frescos na memória quando acordamos, mas com o avançar do dia tornam-se cada vez menos nítidos.
Se quisermos contar um sonho interessante ao fim de algumas horas de acordar, geralmente temos duas opções para as partes que não nos lembramos… ou dizemos que não sabemos o que aconteceu a seguir, ou preenchemos os espaços em branco com uma mistura de criatividade aliada ao que achamos que aconteceu. Ao fim de um tempo, já não sabemos o que é imaginação e o que é realidade. E se repetirmos a história mais que uma vez, acreditamos que foi mesmo assim que sonhamos.
Esse mistério encanta-me. A realidade misturada a algo que gostaríamos que tivesse acontecido e que, no fim, não sabemos se aconteceu mesmo ou não.
Assim são as recordações da nossa infância… histórias reais quanto baste, que fazem viajar quem as ouve ou, nesse caso, quem as lê. Verdadeiras ou não… isso tem alguma importância?